“A black music é uma força, é um diálogo coletivo”, descreve o produtor cultural e engenheiro social Asfilófio de Oliveira Rebento, mais divulgado porquê Dom Tule. Nesta sexta-feira (8), ele comanda ao lado de Marco Aurélio Ferreira, o DJ Corello, a primeira edição do dança Eu senhor Black Music, em comemoração aos 50 anos da Black Music no Brasil. A sarau é realizada pelo Teatro Rival Petrobras, no Núcleo do Rio de Janeiro, e pela Cultne TV.
Em 2024, o marco temporal festejado é a geração do dança Noite do Shaft, em 1974, no Renascença Clube, por Dom Tule, que marca a chegada da black music no país. A sarau recebe esse nome em homenagem ao personagem John Shaft, interpretado por Richard Roundtree em uma série de filmes lançados nos anos 1970.
“É um detetive que passava uma imagem muito positiva da comunidade negra. Essa série foi marcante porque não tínhamos a presença de pessoas negras na televisão naquela quadra. Era uma programação totalmente branca, e aí temos um herói preto”, relembra Dom Tule. “Pegamos a origem afro-americana e ressignificamos cá no Brasil”.
Black Music no Brasil
Segundo o produtor músico, a black music (“música negra”, em português), teve origem nos campos de plantação de algodão dos Estados Unidos, onde pessoas negras escravizadas utilizavam o esquina para dissipar a dor da escravidão. Esse som deu origem a diferentes ritmos musicais, sendo o soul um deles. “Soul significa psique. A soul music é a música da psique”, comenta Dom Tule. “Essa origem nasce nos campos de algodão dos Estados Unidos, mas, quando ela passa para o entretenimento, nasce a música preta americana, nasce o soul, o rhythm and blues, o jazz e o blues”.
“A cultura negra sempre foi músico”, retoma Dom Tule. “Desde os tempos de escravidão, o nosso grande lazer era se reunir para amainar um pouco a dor. Aquelas reuniões, os tambores, os cânticos e as danças vieram através do tempo”. De pai mineiro e mãe fluminense, Dom Tule conta que sempre esteve envolvido com a cultura músico, em peculiar a partir das escolas de samba e das religiões de matriz africana. Por volta dos 18 anos, passou a frequentar o Renascença Clube, fundado por um coletivo de jovens negros. “ “O Renascença fez com que tivéssemos entrada ao cinema, ao teatro e, principalmente, a música. Ali, ouvíamos muita coisa pela rádio, que era o grande top da quadra”.
Foi pelo rádio que diferentes expressões musicais estrangeiras chegaram aos ouvidos brasileiros. Entre elas, a black music, com grande presença nos bailes no Rio de Janeiro.
“Trançando uma traço do tempo, você vai ter vários 50 anos. O Brasil já consumia black music, mas sem promovê-la, sem acessá-la porquê música preta”, observa.
“Você tinha as lojas de disco, as importadoras, mas poucos tinham entrada àqueles discos. Mais tarde, os DJs conseguiram depreender essas prateleiras, trazer os discos de fora e formar suas discotecas pelas equipes de som. Mas, antes das equipes de som começarem as suas festas, temos outra propriedade de penetração dessa música, com artistas nacionais que receberam influência direta da soul music e até foram viver em solo americano, casos do Tim Maia e do Tony Tornado”.
“Naquele momento, não se falava em black music ou em música preta, mas em MPB com um sotaque dissemelhante, o sotaque preto”, diz Dom Tule. Com o desenvolvimento das equipes de som, surge a urgência de se criarem festas para reunir as pessoas em procura do mesmo som. “Aquela catarse, de trazer a galera toda para um envolvente só e tocar aquela música pulsante e emocionante; pura dança, pura autoestima. Essa é a origem do dança”, comenta. Uma dessas festas foi a Soul Grand Prix — também um grupo músico formado por músicos do Renascença Clube, porquê Dom Tule — que nasceu não exclusivamente para diversão, mas também para discutir questões raciais.
“Sofríamos muito, vivíamos a dor a semana toda. Era discriminação o todo tempo, baixa autoestima. Quando vem uma equipe porquê a Soul Grand Prix, que passa para a comunidade a urgência da autoestima, do pertencimento e da identidade, a galera muda o seu comportamento, muda o seu visual. Mesmo vivendo aquele momento de ditadura, em que nós, negros, éramos massacrados, ainda conseguíamos passar um pouco de black power (poder preto)”.
Movimento Black Rio
A disseminação da black music no Brasil a partir das rádios não se limitou exclusivamente aos bailes promovidos para a comunidade negra, mas deu origem a um movimento músico e cultural concentrado, principalmente, no Rio de Janeiro, reconhecido porquê Movimento Black Rio. Essa revelação levou a música negra estadunidense aos subúrbios da cidade, fazendo surgir uma geração inspirada pela reivindicação dos seus direitos, que adapta o estilo norte-americano à verdade vernáculo. A mistura do soul e do funk ao samba ainda deu origem à margem black rio, modernizando o som brasiliano.
Responsável do livro 1976: Movimento Black Rio ao lado do jornalista Zé Octávio Sebadelhe, Luiz Felipe de Lima Peixoto descreve que o Movimento Black Rio não foi uma ação pensada, mas “alguma coisa totalmente orgânico”, surgindo da urgência da comunidade negra se expressar a partir das músicas estadunidenses. “Foi uma forma de asseveração da identidade negra em um período pesado da ditadura militar em nosso país”.
De concórdia com Peixoto, a origem do movimento surge muito antes da introdução da black music no país, quando o rádio passou a publicar o samba para o grande público, nas décadas de 1940 e 1950. A sua popularização atraiu a classe média, formada, principalmente, por pessoas brancas, para as escolas de samba, que deixaram de ser “vasculhadas” pela polícia. “Até aquele momento, o samba era coisa de marginal, de malandro. Os negros que não se identificavam mais com tudo isso acabaram se identificando com a música negra norte-americana e toda a sua reivindicação histórica daquele período”.
O profissional considera que o Movimento Black Rio foi fundamental para a geração da resistência negra em um período de vexame, assim porquê para a asseveração da identidade negra no Brasil. “Nos bailes, principalmente os promovidos por Dom Tule, discursos antirracista e de afirmações da negritude eram proferidos durante as músicas. Todo esse enredo, as festas, as músicas, as vestimentas, contribuíram para essa reafirmação de uma identidade negra mais positiva”.
Na viradela dos anos 1970, a frase cultural passa a perder força. A popularização das discotecas foi um dos motivos que contribuíram para esse novo cenário.
“A mudança das preferências musicais do público e a evolução cultural, mas, principalmente, a perseguição, a repressão, a increpação e a vigilância mais evidente nos bailes na quadra, foram pontos cruciais para o declínio”, destaca o responsável.
Mesmo com a subtracção da força dessa revelação, Dom Tule ressalta a relevância do Movimento Black Rio no país, que passou a ser visto a partir de uma ótica negra. “Esse movimento teve uma relevância muito grande na questão do comportamento, do pertencimento, da identidade e da autoestima, tudo isso numa tecnologia ascendente trabalhada até hoje para que a nossa comunidade, a comunidade negra, seja reparada. Só usamos a música porquê elemento”.
Movimento Charme
Uma das expressões mais marcantes desse período de transformação músico no Brasil é o Movimento Charme, criado pelo DJ Corello (foto em destaque). À Dependência Brasil, ele conta que o movimento começou quando ele próprio tomou a iniciativa de tocar um gênero músico dissemelhante do soul nos bailes de black music, porquê o rhythm and blues, substanciado para R&B. “Fui o primeiro DJ de soul a trespassar do soul e entrar em outro caminho. No tempo do soul, você tinha que dançar uma música e parar para entrar no ritmo de outra, mas eu já pensava na mixagem”, relembra.
“O Movimento Charme, que começou nos anos 1980, já iniciou com essa pegada de uma música dentro da outra. Essa sonoridade pegou outra geração, que não era a geração do soul, com o ouvido virgem. Eu consegui catequizar essa geração para o Movimento Charme”, continua. Também é atribuído ao DJ Corello o uso do termo “charme” para identificar o movimento, que nos bailes sempre dizia
“Chegou a hora do charminho, transe seu corpo muito devagarinho” para anunciar a mudança do repertório músico.
Por muitos anos, o movimento teve o Viaduto de Madureira porquê principal referência de charme no Rio de Janeiro, mas, com a mudança de repertório, que passou a tocar outros gêneros musicais além do R&B, o Dança Black Bom, criado em 2013 na Pedra do Sal, no bairro de Saúde, assumiu esse papel. Apesar de não simbolizar mais o charme da mesma forma que no pretérito, o DJ destaca que o Viaduto de Madureira não deve ser esquecido, porque teve sua relevância para a revelação cultural. “Hoje, o Black Bom é referência, daqui a cinco anos, vai ser outro, porque é uma jacente evolução”.
Música negra no Brasil
“Quando penso música no Brasil, penso que toda música adquirida no país tem marcas negras”, afirma a professora do Departamento de Ensino da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Denise Barata.
Ela defende que a música no país é construída a partir de uma experiência negra, resultando da diáspora africana que provocou o deslocamento de mais de 12,5 milhões de africanos para as Américas e para a Europa entre os séculos XVI e XIX, porquê aborda no item “A música na Diáspora Africana da América Latina”. Assim, gêneros musicais nascidos na comunidade negra são formas de sociabilidade e de espalhamento da memória negra.
“Quando falamos da música negra brasileira, estamos falando de uma forma de sociabilidade que na voz emana memória. Quando ouço Dona Ivone Lara ou Jovelina Pérola Negra, a memória da diáspora está ali presente, e não é só pela cor da pele”, traz a pesquisadora.
“Essa memória se faz presente ainda hoje. Ela não desaparece e pode ser encontrada no samba, no funk e nos jovens que revivem a black music. Quando falamos da memória negra, estamos falando de uma cultura que é muito importante e que não desaparece apesar de todo racismo, de toda pressão injusta da indústria radiofônica e da teoria de democracia racial. A memória negra se faz presente até os dias de hoje, exatamente pela potência que ela é”.
Para Peixoto, a black music no Brasil pode ser vista porquê uma prolongamento e uma evolução da cultura músico que já existia no país, trazendo novos elementos sonoros e abordando assuntos que enriqueceram a música brasileira. Além disso, o movimento veio fortalecer a identidade e a visibilidade da comunidade negra, apesar da resistência aos ritmos estrangeiros no momento que passaram a ser difundidos pelas rádios em subida na quadra.
“Hoje se relacionam muito, mas, naquele período, a black music foi motivo de discórdia e revolta da sociedade brasileira, colocando o samba porquê alguma coisa realmente legítimo e fidedigno da nossa frase cultural. Portanto a black music sofreu, sim, muito preconceito naquele período, mas inegavelmente trouxe grande influência”, pontua. “Hoje, podemos observar um legado incrível, através de gêneros porquê o samba-funk, o samba-rock e o próprio funk carioca”.
Diante dos 50 anos da black music no Brasil, Dom Tule destaca esse período porquê um momento de transformação, em que a comunidade negra obteve avanços na luta racial, apesar de não serem suficientes para lidarem com o preconceito e com a discriminação no país. “Tive a honra e a benção de estar vivendo essa transformação”, celebra.
“Hoje, eu me deparo com várias gerações e com várias pessoas, inclusive da minha geração, que se influenciaram por tudo isso e trazem isso para a novidade geração. Hoje, temos respostas. Na minha quadra, eu não tinha referências. As referências eram todas negativas. Na escola, nos livros escolares, nas representações artísticas, todas elas eram negativas. A minha geração viveu essa transformação e a minha maior esperança é que a garotada que está chegando tenha consciência de que esse processo não começou agora, ele vem de lá detrás”.
*Estagiária sob supervisão de Vinícius Lisboa