Uma lona preta desgastada, apoiada por madeiras fincadas na terreno, em dimensão de passeio, cobre a vida da aposentada baiana Luzia Cavalcante, de 67 anos. “Mas estar na rua não é a minha maior dor. Pior que a pobreza é a saudade”, lamenta.
Com a vassoura na mão, a mulher nascida em Campo Jubiloso de Lourdes (BA) buscava alongar a poeira jogada pelos carros que passam acelerados por uma via expressa na Asa Setentrião, em Brasília.
“Eu varro a rua na frente de mansão para passar o tempo. Todos os anos, preparo minha cabeça para o Dia de Finados (2), o meu pior dia da vida”. É quando ela vai visitar os túmulos do marido Raimundo, falecido com cancro de esôfago, há 28 anos, e do fruto João, assassinado aos 18 anos, em 2019.
Foi pela memória do fruto que Luzia passou três dias buscando doação e empréstimo para juntar R$ 3 milénio e conseguir sepultar o corpo do rapaz em um cemitério de Planaltina (DF). Teve dificuldades de pedir ajuda porque não sabe redigir sobre a dor e a premência que estava passando.
“Penso neles a toda hora. Tem gente que nos vê vivendo na rua e pensa que a gente é habituado a viver na dor. Eu nunca me acostumei a viver sem eles”, lamentou.
Até a morte do rapaz, eles viviam em uma mansão “humilde” na cidade de Vianópolis (GO).
Luto
Mas a dor e “outros motivos” levaram segmento da família a viver em uma barraca na rua. Levantamento do Instituto de Pesquisa e Estatística do Província Federalista (IPE-DF), divulgado no ano pretérito, mostra que o número de pessoas em situação de rua nessa unidade federativa é de 2.938.
A morte de familiares é citada uma vez que um dos principais motivos que levam pessoas para essa requisito. Em todo o Brasil, segundo o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, são 236,4 milénio.
A correria de Luzia envolve tentar cuidar dos outros nove filhos que ficaram, incluindo a caçula que sofre de anemia profunda e não anda. A barraca onde vivem foi instalada próxima ao hospital público na Asa Setentrião em que a jovem de 18 anos faz tratamento.
“Amanhã é dia de ir ao cemitério. Segunda é para ir ao hospital”. Atualmente, ela sobrevive com o Favor de Prestação Continuada (BPC), do governo federalista, e tenta, nos dias que volta a Goiás, cultivar a roça na mansão de amigos. Ela queria cuidar mais dos túmulos em que os amores da vida dela estão enterrados.
Invisibilidade
Luzia não sabia, mas, no Província Federalista, onde ela vive, há a possibilidade de que pessoas em vulnerabilidade recorram ao sepultamento social. A secretaria de Desenvolvimento Social garante que divulga o serviço para o público-alvo. São exigidos para o favor documentos oficiais, uma vez que o comprovante de renda, que não pode ultrapassar 50% do salário mínimo na mansão da pessoa.
Conforme explica a professora de serviço social Larissa Matos, do Núcleo Universitário de Brasília (Ceub), pessoas em situação de rua, mesmo vivendo em áreas urbanas, à vista da povaréu da metrópole, estão invisibilizadas, inclusive pelas políticas públicas e pela sociedade. Assim, também invisibilizadas também na situação de luto.
“A fragilidade em que vivem pode aprofundar ainda mais os sentimentos da perda e as lembranças de um outro momento de vida”, diz a pesquisadora.
Saudade diária
Outra baiana na capital do Brasil, que define a vida uma vez que uma “saudade diária”, é Maria dos Santos, de 60 anos. Ela, que mudou de Xique-Xique (BA) para a capital do país quando era jovem, diz que a perda dos pais de forma precoce fez também com que perdesse a mansão e o rumo da vida.
Maria também vive sob uma lona, ao lado de uma obra na capital.
“Quando eles eram vivos, tínhamos uma roça. Eles estão enterrados em Goiás. Não tenho uma vez que ir lá ver. Não tenho numerário para viajar. Até queria, mas não dá”, lamenta.
Por falar em saudades, o pernambucano Sebastião de Lima, de 59 anos, que vive sob uma lona na Asa Sul, diz que sonha todos os dias com a mãe, que morreu há três décadas. “O corpo dela está enterrado lá em Olinda (PE). Não tenho uma vez que visitar. Mas eu queria. Era ela a pessoa que me dava carinho na vida. Tudo piorou depois”. Não seguiu na escola e só podia trabalhar para sobreviver.
Ele hoje trabalha com reciclagem, mas tem dificuldades de recolher materiais com as mãos. O varão sofreu um acidente há 20 anos enquanto consertava uma tapume. No ano seguinte, sofreu com a morte de um irmão e um sobrinho de 14 anos de idade.
“Eles foram enterrados em cova rasa, mas é em um lugar longe daqui. Fico só no meu barraco chorando e rezando por eles no dia dos mortos”.