A Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) confirmou, nesta sexta-feira (25), que recebeu o cérebro do ex-pugilista José Adilson Rodrigues dos Santos, o Maguila, para estudos sobre a Encefalopatia Traumática Crônica (ETC). A doença com a qual o ex-atleta conviveu por 18 anos é degenerativa e afeta as células cerebrais por meio de impactos repetidos na cabeça. Vencedor mundial dos pesos pesados, ele faleceu na última quinta-feira (24) aos 66 anos.
“Resolvemos, em vida, pela doação do cérebro dele. Foi feito isso ontem [quinta-feira]”, disse a viúva de Maguila, Irani Pinho, em entrevista coletiva nesta sexta-feira na Reunião Legislativa de São Paulo, lugar no qual o corpo do marido foi velado durante a manhã.
O cérebro de Maguila é o terceiro pertencente a um desportista que o Biobanco para Estudos em Envelhecimento da FMUSP tem entrada. A entidade já pôde estudar as doações de mais dois campeões mundiais: o também ex-pugilista Éder Jofre e o ex-jogador de futebol Bellini, capitão da seleção brasileira que conquistou a Despensa do Mundo de 1958. Ambos tiveram o diagnóstico da Encefalopatia Traumática Crônica confirmado.
“A suspeita clínica existe, mas o diagnóstico, por enquanto, é anatomopatológico [análise de fragmentos de um tecido retirado do indivíduo]. A relevância da disponibilidade do tecido cerebral desses atletas é enorme para a pesquisa e a ciência, pois, no termo, [o resultado] reverte para todo mundo”, avaliou a coordenadora do Departamento Científico de Traumatismo Cranioencefálico da Ateneu Brasileira de Neurologia (ABN), Maria Elisabeth Ferraz, à Dependência Brasil.
“Evidente que nossa maior meta é a prevenção, mas, muitas vezes, fazermos diagnósticos mais precoces. Com isso, evitando que o sujeito continue tendo choques cranianos. Se tivermos biomarcadores [indicadores que fornecem dados sobre a saúde da pessoa], exames laboratoriais ou de imagem que possam fazer esse diagnóstico – ou suspeita de diagnóstico – mais precoce, podemos desenvolver ainda mais a prevenção”, completou a médica neurologista.
A doença que acometeu Maguila, Eder Jofre e Bellini foi invenção em 2002 pelo neuropatologista Bennet Omalu. Ele diagnosticou a encefalopatia no sucumbido de um ex-jogador de futebol americano chamado Mike Webster, que havia falecido aos 50 anos, vítima de um ataque cardíaco.
A repercussão do estudo, publicado três anos depois, incomodou os dirigentes da liga responsável pela modalidade (NFL, na {sigla} em inglês) e levou a ameaças ao médico nigeriano-americano. Mais de uma dez depois, em seguida novas pesquisas e com atletas acionando a Justiça, a NFL, enfim, estabeleceu um protocolo de concussão e investiu em tecnologia para aumentar a segurança do jogo. A história, inclusive, transformou-se no filme “Um Varão Entre Gigantes”, de 2015, protagonizado pelo ator Will Smith.
“[A Encefalopatia Traumática Crônica] culmina com um quadro de alterações de comportamento, psiquiátricas, cognitivas, de memória e de estabilidade que muitas vezes se desenvolvem em seguida o desportista estar reformado, pois ela é resultado de inúmeros impactos no cérebro ao longo de anos. Evidente, fatores ambientais e genéticos também contam, mas é uma doença que se instala com o passar do tempo, culminando em quadros gravíssimos”, explicou Maria Elisabeth.
Segundo a coordenadora da ABN, não há urgência de que o sujeito perdida a consciência para ter sofrido uma lesão cerebral. Segundo ela, os choques repetidos na cabeça, mesmo sem um desmaio, já podem levar ao movimento do cérebro na caixa craniana.
Por termo, a neurologista destacou uma verdade além do esporte, mas que dialoga com a periculosidade da encefalopatia. Segundo o boletim “Elas Vivem: Liberdade de Ser e Viver”, divulgado em março deste ano, ao menos oito mulheres foram vítimas de violência doméstica a cada 24 horas em 2023, em oito dos nove estados monitorados pela Rede de Observatórios da Segurança: Bahia, Ceará, Maranhão, Pará, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e São Paulo.
“Qualquer tipo de impacto que se repita no cérebro pode levar a alterações cognitivas, degenerativas e comportamentais. Aquela mulher que sofre violência doméstica cronicamente em mansão, por seu companheiro ou alguém mais, também pode desenvolver esse quadro degenerativo neurológico. E pode sobrevir com crianças”, alertou.